Crônica inédita de Lima Barreto encontrada na BN

sexta-feira, 18 de setembro de 2015.
Notícia
Lima Barreto, literatura, literatura brasileira
A crônica “Portugueses na África”, escrita por Lima Barreto – provavelmente em 1907 –, nunca foi publicada; nem mesmo na coluna “Echos”, da revista A Floreal, à qual ela se destinava, segundo indicação do autor no verso de uma das folhas em que foi escrita. O original foi encontrado recentemente numa pasta do Arquivo Lima Barreto – que está preservado na Divisão de Manuscritos – pelo doutor em “Estudos Brasileiros (Literatura e Cultura)” pela Universidade de Lisboa, João Marques Lopes, hoje bolsista do Programa Nacional de Apoio a Pesquisadores Residentes (PNAP-R), da Biblioteca Nacional. João Marques Lopes estuda o modo como a obra de Lima Barreto, um dos mais importantes escritores brasileiros, foi recebida em Portugal.

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João Marques Lopes, pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional em sistema de residência pelo Programa Nacional de Apoio a Pesquisa (PNAP-R).
João Marques Lopes, pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional em sistema de residência pelo Programa Nacional de Apoio a Pesquisa (PNAP-R).

“Portugueses na África” faz duras críticas à ocupação de territórios do interior de Angola até então sob o domínio de populações nativas. Angola começou a ser colonizada pelos portugueses no século XV, mas por longo tempo a dominação se concentrou no litoral. Só no final do século XIX, como efeito da insólita “Partilha da África” pelos países europeus envolvidos na expansão neocolonialista, Portugal ocupou o interior. Em 1975, um ano depois da Revolução dos Cravos, Angola se libertaria.

A ocupação militar em 1907, com a conquista da província de Guanato, foi saudada com regozijo pela maior parte da imprensa portuguesa e também por alguns jornais brasileiros. Lima Barreto contestou com pura mordacidade o tratamento colonialista e racista dado ao acontecimento:

Tenho para mim que esses negros flexíveis e adaptáveis a toda a sorte de misteres, desde o de bestas de carga até o nobilíssimo de adversários dos esforçados varões do Portugal moderno, têm que acabar um dia. Se isso se der, a velha metrópole vai se ver atrapalhada para arranjar quem se preste à demonstração experimental de sua heroicidade eterna […].

Na mesma pasta também foi achado o primeiro parágrafo da crônica “Os Jornais”, cujo tema é o assassinato do rei de Portugal, D. Carlos, em 1908.

Texto de João Marques Lopes sobre os manuscritos inéditos

A seguir, leia texto do pesquisador João Marques Lopes sobre a importante descoberta.

Tendo em atenção o trabalho exigente e sistemático de Beatriz Resende e Rachel Valença na edição dos dois volumes de Toda a crônica, de Lima Barreto (Agir, Rio de Janeiro, 2004), não seria de esperar que ainda houvessem crônicas ou esboços de crônicas do escritor  carioca por identificar (e, consequentemente, por publicar).

Embora a jusante da nosso projeto de pesquisa, que consiste na “Recepção de Lima Barreto em Portugal: a documentação na Fundação Biblioteca Nacional (1909-1922), foi, portanto, com grande surpresa e alvoroço que, ao manusearmos uma pasta com seis tiras manuscritas e autógrafas de Lima Barreto, catalogada por Darcy Damasceno como “Pequeno Almanaque de Celebridades”, nos deparámos com duas crônicas desconhecidas.

Uma, intitulada “Portugueses em África”, está completa e centrava-se na denúncia de massacres de tribos índigenas então cometidos pelo colonialismo português nas possessões africanas no âmbito da campanha do Cuamato em 1907. Augurava mesmo a eventualidade de futuros movimentos independentistas negros.

A outra, cujo título seria aparentemente “Os jornais”, está incompleta e o tema é o impacto do assassinato do Rei D. Carlos na imprensa carioca. Impacto esse que Lima Barreto taxava de desmesurado e apenas compreensível à luz do então domínio do jornalismo do Rio de Janeiro por capitalistas da colónia portuguesa na cidade.

Embora não estejam assinadas ou datadas, a caligrafia não deixa dúvida quanto à sua autoria por parte de Lima Barreto e existem indicadores que permitem situar com certeza tanto a data quanto o lugar de publicação a que se destinavam, sobretudo no caso da primeira crônica.

Com efeito, “Os portugueses em África”, cujo original consta de três tiras manuscritas, autógrafas e numeradas, comporta no verso da última tira uma anotação a referir que “devia ser publicada na A Floreal” e no canto superior esquerdo da primeira página tem a indicação da coluna “Echos” a que se destinava nessa mesma revista. Trata-se, pois, de um texto escrito nos últimos meses de 1907.

Mas o mais importante não tem a ver com tais minudências, mas sim com a divulgação e a leitura  destas duas crônicas que jaziam esquecidas e desconhecidas no Fundo Lima Barreto da Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional.

Transcrições

A seguir, as transcrições dos dois textos de Lima Barreto .

Portugueses na África [1]

Os srs. já conhecem a coisa. De ano em ano, os jornais daqui e de além-mar noticiam estrondosas vitórias dos portugueses sobre os indígenas de suas possessões de África. No tempo dos “Lusíadas”, talvez por não existir o jornalismo periódico, não davam tanta importância a feitos idênticos. Pelo menos não tenho notícia que Lisboa festejasse retumbantemente Antônio Salema, que, aí pelos fins de Quinhentos, matou dez mil índios perto de Cabo Frio; e se ainda nos resta memória das proezas da gente assinalada em Diu e Goa é porque alguns cronistas precavidos e meia dúzia de poetas entusiastas registraram-nas em prosa de bronze, ainda áspero, e em grandiosos versos, um tanto monótonos.

Hoje, não havendo farta messe de ações heroicas, lá pelo velho Portugal, os jornais e o governo não deixam escapar uma só vitoriazinha. Os heroísmos são narrados um a um, em frases cheirando ainda à Ilíada; os retratos são publicados e os plutarcas afiam a pena para mais essa centena de varões ilustres.

O que há em suma? Esta coisa simples: um destacamento português, de cem ou duzentas praças, derrota uma partida de desgraça dos negros, duplamente desgraçados por serem negros e por viverem em possessões do Portugal necessitado de vitórias.

Pelo jeito, o governo lusitano precisa demonstrar a vitalidade da nação; precisa lembrar ao mundo que o sangue heroico dos varões assinalados ainda não está de todo acabado; e para tal organiza, de quando em quando, umas justas art-nouveau em que morrem algumas dezenas de negros (ora, os negros!) e os portugueses praticam heroísmos dignos de versos gregos e do triunfo romano.

Tenho para mim que esses negros flexíveis e adaptáveis a toda a sorte de misteres, desde o de bestas de carga até o nobilíssimo de adversários dos esforçados varões do Portugal moderno, têm que acabar um dia. Se isso se der, a velha metrópole vai se ver atrapalhada para arranjar quem se preste à demonstração experimental de sua heroicidade eterna; e, a menos que a gente  a quem outrora Marte obedeceu queira combater os chimpanzés e os gorilas de África, Lisboa só terá festas com franco cunho guerreiro quando o governo das Necessidades sabiamente resolver condecorar com grandiosas  solenidades os valentões da Baixa que se portarem heroicamente nas rijas com tripulações de barcos estrangeiros de passagem pelo Tejo. Então é que havemos de ver o indigesto Teófilo a explicar esse afloramento do Heitor português na população da sarjeta alfacinha e o velho Camões a bimbalhar nas colunas dos jornais:

Cale-se de Alexandre e de Trajano,

A fama das vitórias…

E poderá assim Portugal, e por muito tempo, achar nos seus registos de nascimento, nomes que se possam contar naqueles outros em quem, como o Albuquerque terrível e o Castro forte, a morte não teve poder.

É ainda de Camões que, a meu ver, deve sofrer modificações convenientes para se adaptarem ao novo heroísmo de Portugal, se os nossos irmãos do Tejo querem um adaptador excelente, temos aqui à mão alguns experimentados em guerra. O Barão de Paranaguá calha, por exemplo…

[1] A ortografia foi atualizada

Os jornais

O assassinato do Rei de Portugal vem demonstrar do modo mais eloquente de que maneira a nossa imprensa carioca é uma pura e simples exposição dos sentimentos e das opiniões do comércio português do Rio de Janeiro. O assassinato do rei D. Carlos, em si coisa lastimável para a sua família e os seus amigos, não podia ser no Brasil senão um caso secundário e provocador de condolências oficiais. Nada havia que o pudesse fazer um acontecimento capaz de enlutar e trazer coberta de tristeza uma grande cidade, de mais de oitocentos mil habitantes, situada a milhares de léguas do local do crime e em país estrangeiro.

Graças, porém, à manha inaudita de um...[1]

[1] O manuscrito autógrafo termina aqui. No arquivo, apenas se conserva esta versão parcial.

Crônica “Portugueses na África” (1)
Crônica “Portugueses na África” (2)
Crônica “Portugueses na África” (3)
Crônica “Portugueses na África” (4)
Crônica “Portugueses na África” (5)
Crônica “Portugueses na África” (6)
Verso de página da crônica “Portugueses na África”, em que Lima Barreto anota o nome da revista “A Floreal”.
Crônica “Os jornais” (1)
Crônica “Os jornais” (2)