Entrevista com Wallace Lopes Silva, organizador da obra “Sambo, logo penso”

segunda-feira, 28 de março de 2016.
Entrevista
livros, pesquisa, samba
No ano em que o primeiro registro de samba completa seu centenário – em 1916, o sambista Ernesto dos Santos, o Donga, registrou a composição “Pelo telefone” no Departamento de Direitos Autorais, da Biblioteca Nacional –, o pesquisador Wallace Lopes trabalha ativamente na inserção do samba como uma nova forma de se pensar. Ele participa de um grupo de estudos sobre as perspectivas filosóficas de saberes africanos e afrodiaspóricos e é o organizador de “Sambo, logo penso”, coedição da Biblioteca Nacional (BN) com a Hexis Editora, resultado do Edital de Coedições de Autores Negros, realizado em 2013. Nessa entrevista, ele reafirma a importância de se abrir as perspectivas ao pensar sobre a cultura africana e afrodescendente e explica a proposta do livro e seus impactos nas discussões acadêmicas.

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Wallace Lopes Silva, organizador de Sambo, logo penso
Wallace Lopes Silva, organizador de Sambo, logo penso

A quem se destina o livro? Como o senhor descreve o público do livro?

A partir da exigência da lei 10.639/2003, o ensino da história da cultura afro-brasileira e africana se torna obrigatório no currículo escolar. Esse livro vem se tornando uma ferramenta para os profissionais de educação na sua capacitação didática e política no que tange à lei. Ele traz histórias do samba e de sambistas negros como protagonistas do pensamento. Assim, esperamos que este trabalho contribua para o ensino afinado com a referida lei e, além disso, colabore também para o debate acadêmico em relação à desconstrução do racismo epistêmico e à colonização do pensamento.

O senhor descreve as “afroperspectivas filosóficas” como aspectos que levam em conta os protagonismos africanos e afrodiaspóricos. E usa o termo “afro” no sentido de restauração, de saúde, de elixir para vitalidade. Em que lugares e de que formas essas afroperspectivas filosóficas podem ser encontradas hoje?

Este livro é um desdobramento da orientação filosófica do professor doutor Renato Noguera, da UFRRJ, e de seu Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin). No conceito de afroperspectivismo apresentado por Noguera encontramos um tom e uma cadência de um horizonte ainda não cartografado. O “afro” não é um tema do livro, mas um jeito, um sotaque. Essas afroperspectivas se traduzem no corpo negro, na ginga, no futebol, na capoeira e no samba.

Explique um pouco mais a afirmação de que o samba é bastião – base, fortaleza, movimento de resistência – da cultura afrodescendente.

Contrariamos a tendência sociológica que busca uma única identidade étnica e racial no negro brasileiro, cristalizada no tempo e no espaço. “Sambo, logo penso” é uma tentativa, um convite e um esforço filosófico de pensar as diversas invenções do samba que transbordam as concepções clássicas.

Exemplo disso, é a paisagem poética de Noel Rosa e de Wilson Batista que eu trabalhei no meu artigo junto com Felipe Ribeiro. Esses sambistas oferecem uma cidade, e nela se destaca a figura do andarilho, que cartografa seu próprio andar e a cadência e a intensidade dos encontros, das afecções, dos afetos.

Se todo conceito é uma disponibilidade para um novo horizonte, eis que o samba oferece suporte para o refinamento, pois o samba não é apenas um gênero musical; é sim uma gramática poética e estratégia existencial de afirmação da vida. Há também outros mapas desse mesmo movimento a partir de outros sambistas, nos outros capítulos do livro, como nos artigos de Filipi Gradim, Guilherme Celestino, Marcelo Rangel e Eduardo Barbosa.

Qual a importância de fazer uma genealogia do samba?

Nosso foco não é encontrar uma origem do samba, buscar uma identidade do samba. Toda identidade totalizante tende a imobilizar um processo. Buscamos perspectivas mais de abertura do que afirmações que encerrem dogmaticamente o devir de pensar o samba.

A genealogia do samba que nós versamos tem ressonância mais direta com a compreensão que Nietzsche dá a esse termo. Interessa ver e ouvir as invenções poéticas, melódicas, antropofágicas do samba, mais do que se delimitar a uma cronologia e um mito fundador. Como diz o professor doutor da UFRJ Bernardo Oliveira, “o samba não é, como se tornou comum afirmar, um ‘ethos’ (síntese dos costumes de um povo), mas um ‘pathos’ (paixão, excesso, catástrofe, passagem, sofrimento, fruto de uma perspectiva única e insubstituível).”

Como destacar o estudo da filosofia tradicional africana e as contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade?

O projeto de filosofia ocidental tem sido feito pelo homem branco heterossexual e europeu. Deixa à margem pensadores e pensadoras que destoam desse modelo tão presente na academia hoje. Existem alguns pensadores que têm sido muito importantes nessa tarefa de descolonizar o pensamento filosófico brasileiro, tais como Frantz Fanon, Gayatri Spivak, Magobe Ramose, Stuart Hall e Milton Santos. Esses pensadores e pensadoras rebeldes recolocam na cena narrativas interditadas ao longo do projeto colonial. Apresentam novos atores e atrizes na cena do pensamento filosófico.

Quais os efeitos/impactos já observados com a publicação do livro? Como eles foram observados?

Os autores têm divulgado o livro em escolas, espaços acadêmicos e culturais. Nesses encontros, a recepção dos mais jovens tem mostrado muito entusiasmo. Talvez por ser uma publicação recente de um tema pouco explorado na filosofia que se pratica na universidade, ainda falte mais procura por essa temática.

Como está sendo a divulgação e o uso do livro? Quais as possibilidades de divulgação?

O livro tem sido acolhido por pesquisadores, professores e militantes da educação e do samba, e tem alimentado o debate das relações étnicorraciais na arena filosófica. A ideia foi trazer a filosofia para o campo do samba. Evidenciar a dignidade de uma cultura afrodiaspórica em curso – embora este campo de saber seja tão negligenciado nos espaços acadêmicos. O reconhecimento vindo pela coedição do livro com a Fundação Biblioteca Nacional, através do edital da Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), nos permitiu dar um passo decisivo nesta proposta. 

Wallace Lopes Silva, organizador de Sambo, logo penso
Wallace Lopes Silva, organizador de Sambo, logo penso
Capa da obra Sambo, logo penso, que conta com organização de Wallace Lopes Silva.