A historiografia medieval a partir da narrativa dos cinco mártires de Marrocos

quarta-feira, 12 de abril de 2017.
Perfil
Idade Média, história
É possível considerar as narrativas de vidas de santos medievais como discurso histórico? Partindo dessa indagação, o projeto de pesquisa do bolsista residente Marcelo Berriel “Texto e Monumentalidade no Culto aos Cinco Mártires de Marrocos em Portugal: a narrativa do martírio como texto histórico na obra de frei Marcos de Lisboa” pretende elucidar a maneira pela qual um cronista do século XVI se utilizou de relatos de martírio para construir memória social.

A narrativa do martírio dos “cinco mártires de Marrocos” constituiu-se, segundo Marcelo Berriel, em tema obrigatório de crônicas da ordem franciscana no período compreendido entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna (século XV). A história dos frades franciscanos italianos – que no século XIII saíram da Itália com destino a Marrocos para pregar a mensagem cristã e se tornarem os primeiros mártires da ordem franciscana – ganharia destaque entre os cronistas daquela ordem.

Os cinco frades passaram por Portugal e, segundo conta a tradição, teriam sido recebidos pela rainha Dona Urraca. Após terem sofrido martírio em Marrocos pelas mãos dos "infiéis" muçulmanos, tiveram as relíquias transportadas para o reino português. O martírio dos frades, em associação com episódios envolvendo Portugal, iniciou, em terras portuguesas, um culto de longa duração que teve um impulso considerável nos séculos XV e XVI.

Marcelo Berriel analisa a estrutura e a trajetória das narrativas do martírio desses franciscanos a partir de uma preciosidade do acervo da Biblioteca Nacional: as Chronicas da Ordem dos Frades Menores do Seraphico Padre Sam Francisco, escritas pelo frei português Marcos de Lisboa. Pertencente ao acervo da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, essa obra, em três volumes, é um dos mais relevantes registros da história dos franciscanos e foi traduzida em várias línguas europeias, alcançando grandiosa repercussão na Europa. 

Segundo Berriel, é indiscutível que se trata de uma das mais importantes obras lusófonas no período da transição entre a Idade Média e a Modernidade, e os três volumes estão entre os mais antigos exemplares da obra (o exemplar do segundo volume data de 1562, ano da primeira edição).

O pesquisador argumenta que o texto de frei Marcos pode ser considerado texto historiográfico, diferentemente do que sustentam muitos historiadores, que geralmente consideram escritos históricos anteriores ao século XVIII como narrativas sem compromisso com os fatos. Quando se trata de mencionar a preocupação com as provas das informações, os critérios usados na escolha das fontes e testemunhos de diferentes tipos, até mesmo os escritos da antiguidade recebem maior consideração do que aqueles da Idade Média e início da Modernidade. Berriel afirma ser necessário perceber que a historiografia medieval era concebida e escrita de maneira diferente da contemporânea, mas, em muitos casos, possui características passíveis de fundamentar o trabalho e a escrita historiográficos.

Marcelo Berriel é professor de História Medieval da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, membro da Rede Luso-Brasileira de Estudos Medievais e líder do LEPEM (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medievalística).