Quem não morreu na Espanhola? - Memórias de Nelson Rodrigues no Correio da Manhã

segunda-feira, 6 de abril de 2020.
Notícia
Nelson Rodrigues
A epidemia de gripe espanhola, que assolou o mundo em 1918, marcou a infância do então menino Nelson Rodrigues. Com 6 anos à época, morador da Aldeia Campista, zona norte do Rio de Janeiro, o futuro escritor vivenciou com seus olhos de criança a transformação da cidade, a mais atingida no país pela gripe. Quando em 1967 começou a escrever suas memórias, em crônicas diárias para o jornal Correio da Manhã, essas lembranças foram abordadas em vários trechos, em especial nos capítulos XI e XII, publicados em 8 e 9 de março.

"Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: - na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam, lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém”.
A morte pela gripe era ainda mais triste por ser solitária. Se em outras crônicas Nelson descreve tão bem os velórios e cortejos fúnebres da época, que o encantavam, o que destaca nessas é a impossibilidade de qualquer ritual de despedida e a abrangência da epidemia, que não poupou nem mesmo o presidente eleito Rodrigues Alves.
"Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos. Era em 1918. A morte estava no ar e repito: - difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam."
"De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjecta. A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Eu me lembro de um vizinho perguntando: -"Quem não morreu na Espanhola?"
A primeira parte das Memórias de Nelson Rodrigues foi publicada em livro pelo Correio da Manhã, com o subtítulo "A menina sem estrela". Considerada por muitos estudiosos e críticos como a melhor coisa já escrita pelo autor, esta primeira edição esgotada tornou-se item de colecionador. Apenas em 1994 todas as crônicas foram reunidas e editadas em livro novamente, também esgotado. Mas as memórias podem ser lidas diretamente no Correio da Manhã, na Hemeroteca Digital.