História do Livro | As Bibliotecas e a Circulação dos Livros na Idade Média

quinta-feira, 25 de junho de 2020.
Notícia
biblioteca, Circulação dos livros, Idade Média, Fundação Biblioteca nacional
Às vésperas de se iniciar o período hoje conhecido como Idade Média, o édito de Milão, promulgado em 313 pelo imperador romano Constantino (306 – 337), declarou a liberdade religiosa no Império. Isso permitiu que as bibliotecas das comunidades cristãs se desenvolvessem em plena luz. As primeiras coexistiram com as bibliotecas romanas: o próprio Constantino possuía milhares de volumes em rolos de papiro, alguns dos quais fez transcrever em pergaminho, material mais durável. O trabalho de preservação foi levado adiante por seu sucessor, Constâncio II (337 – 361), na Biblioteca Imperial de Constantinopla, que resistiria até o fim da Idade Média. Muitos clássicos gregos devem sua preservação às cópias bizantinas existentes ali.

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A gravura em água-forte é do artista italiano Pietro Aquila (ca. 1650-1692) a partir de obra de Rafael Sanzio e Giulio Romano. Esta impressão é posterior, do século XVIII.
A gravura em água-forte é do artista italiano Pietro Aquila (ca. 1650-1692) a partir de obra de Rafael Sanzio e Giulio Romano. Esta impressão é posterior, do século XVIII.

No século V, as bibliotecas romanas tinham desaparecido, ao passo que as cristãs cresciam em número e importância. Anteriores a essa data, houve algumas de vulto, como a do bispo Alexandre, em Jerusalém (século II), a de Cesareia (século III) e a que foi fundada pelo papa Dâmaso I na segunda metade do século IV, para guardar os documentos da Igreja. Nela viria a trabalhar Jerônimo (345 – 420), responsável pela Vulgata, a Bíblia latina. O comércio dos livros era nulo -- já não existia a “taberna libraria”, onde, na Antiguidade, os livros copiados em massa eram postos à venda –, e os próprios leitores faziam circular as obras por meio de empréstimos e da confecção de novos exemplares.

Pouco a pouco, o papel de depositários do saber se transferiu dos membros da comunidade para as ordens e mosteiros a que pertenciam, nos quais se formaram bibliotecas e criaram oficinas de produção de livros. Entre os mais destacados contam-se os de Bizâncio, os das Ilhas Britânicas -- notadamente a Irlanda, com seu estilo de influência céltica e saxã, que produziu obras únicas --, os de cidades da França e algumas da Espanha anterior à dominação islâmica. Ali, Isidoro, arcebispo de Sevilha (ca. 560 – 636), escreveu o que seria um dos livros mais populares ao longo de toda a Idade Média: a compilação de textos clássicos chamada “Etimologia”, também conhecida como “Origines”.

Além das bibliotecas de mosteiros, havia as particulares, que variavam desde uns poucos volumes colecionados por eruditos até as grandes bibliotecas palacianas. A mais famosa foi a de Carlos Magno (768 – 814), sediada em Aachen, na atual Alemanha, formada em grande parte por doações de nobres que conheciam seu amor pelos livros (e desejavam cair em suas boas graças). Ele próprio costumava enviar a Constantinopla e a outras cidades pessoas encarregadas de copiar ou adquirir manuscritos; a prática também era comum nas bibliotecas monacais, visto não haver outra forma de multiplicar os exemplares.

O chamado “renascimento carolíngio” deu um novo impulso à cultura no Ocidente. Ao mesmo tempo, Al-Andalus, a Península Ibérica sob o domínio islâmico, era um universo à parte. As maiores cidades contavam com bibliotecas, tanto de autores muçulmanos quanto cristãos, visto que as populações hispanorromanas não foram obrigadas a se converter. Artes, ciências e filosofia floresceram, e muitos autores clássicos foram traduzidos para o árabe a partir dos manuscritos conservados em Bizâncio. As viagens para obtenção de cópias eram frequentes, por ordem dos governantes ou iniciativa dos eruditos; a taxa de alfabetização era consideravelmente maior que no restante da Europa Ocidental.

A esse respeito, é importante lembrar que, durante toda a Idade Média, a transmissão da informação e do conhecimento foi feita em sua maior parte por via oral. Nos primeiros séculos, afirma o medievalista Paul Zumthor, menos de 1% da população da Europa ocidental era capaz de ler; nem mesmo o fato de pertencer à Igreja era garantia de que se conhecesse a “ars legendi”. Até por volta dos séculos XII – XIII, a cultura escrita era reservada a muito poucos, e o povo se informava por meio de arautos, ouvia notícias da boca dos viajantes e histórias contadas por trovadores e saltimbancos. Muitas, de autoria anônima, foram registradas durante esse período, como várias versões do Cantar de Mío Cid (o mais famoso poema épico espanhol, datado dos séculos XII-XIII) e outras que estão nas raízes de nossa literatura tradicional.

A partir do século XII, as bibliotecas dos mosteiros foram perdendo importância, ao passo que cresciam as das universidades e catedrais. Nelas costumava haver livros reservados para consulta local, mas outros podiam ser emprestados para os mestres e estudantes. O comércio foi retomado, ainda que de forma incipiente, com base no sistema de “pecia”, que permitia a venda, o aluguel e a cópia de partes de obras; somado ao uso cada vez mais frequente do papel, isso facilitou a circulação do livro. Surgiram tratados de leis, ciências, filosofia e, ainda, obras literárias, quer em latim, quer em língua vernácula. A leitura particular e silenciosa se tornou mais comum, e as edições escritas se multiplicaram, muitas vezes com o patrocínio de mecenas. Dentre estes contam-se os escritores Francesco Petrarca (1304 – 1374) e Giovanni Boccaccio (1313 – 1775), assim como a poderosa família Médici.

Quando, através da imprensa de tipos móveis, finalmente se conseguiu uma forma de produzir livros em maiores quantidades, muitas obras já existentes como manuscritos foram rapidamente impressas. Algumas tinham várias versões, como o livro de Isidoro; os historiadores Febvre e Martin mencionam nada menos que 250 cópias manuscritas de uma obra chamada “Voyage de Jean de Mandeville”. E, tal como já faziam Jerônimo e outros estudiosos ao longo da Idade Média, também alguns dos primeiros e mais famosos impressores se dedicaram a cotejar os manuscritos existentes, a fim de oferecer a seus leitores a versão mais correta possível. 
Esta gravura, pertencente à Divisão de Iconografia, mostra a batalha de Constantino contra Maxêncio, outro nome de Maximiano II, que fora reconhecido como imperador em parte do Império Romano. A batalha teve lugar em 312 na Ponte Mílvia, uma das que cruzam o Rio Tibre. A vitória de Constantino o pôs no caminho que viria a torná-lo o único imperador.

A gravura em água-forte é do artista italiano Pietro Aquila (ca. 1650-1692) a partir de obra de Rafael Sanzio e Giulio Romano. Esta impressão é posterior, do século XVIII.

http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon3...

Utilizada por estudiosos ao longo de toda a Idade Média e Renascimento, a compilação “Etimologia”, de Isidoro de Sevilha, rapidamente ganhou versão impressa. Veja esta página pertencente a uma edição de 1483, publicado em Veneza, na qual se mostra o mapa do mundo conhecido na concepção do autor. O livro pertence à Divisão de Obras Raras.

http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or8131...

Outro manuscrito que circulou bastante na Idade Média foi o “Liber de Contemptu Mundi”, de Isaac, bispo de Nínive (cidade da antiga Assíria, hoje parte do Iraque). O autor viveu no século VII e escreveu em siríaco. Sua obra foi amplamente traduzida e difundida através de traduções para o grego e destas para o latim e as línguas românicas. O mais completo manuscrito em português, ornamentado com iluminuras, pertence à Divisão de Manuscritos. Veja as primeiras páginas:

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss_50_2_015.pdf

Para quem desejar ler o livro, a Biblioteca Nacional também disponibiliza o texto em meio eletrônico através do link

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/livro_isaac_ni...

(Ana Lúcia Merege)