O GLOSSÁRIO DO SILÊNCIO: palavras, expressões, versos e poemas expurgados na coleção Ad usum Delphini

quarta-feira, 12 de maio de 2021.
Perfil
Fundação Biblioteca nacional, FBN
RESUMO: A pesquisa consiste, essencialmente, na elaboração de um glossário contendo os expurgos da coleção Ad usum Delphini, devidamente traduzidos, abonados e comentados em língua portuguesa. Além disso, objetivamos munir esse glossário de um ensaio introdutório, contendo informações sobre a coleção Ad usum Delphini, censura bibliográfica, transmissão do texto clássico em edições modernas e os fatores históricos que teriam condicionado a presença de exemplares de 34 volumes da referida coleção no acervo da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Pretendemos, ainda, produzir notas de raridade e importância para os exemplares da referida coleção depositados na FBN, não só contribuindo para melhorar a descrição catalográfica dos mesmos na base on-line da instituição, bem como produzindo justificativas e argumentos de encaminhamento dos volumes em estado crítico de conservação para restauro, digitalização e, consequentemente, retorno à consulta.

Nos dicionários franceses, os verbetes Ad usum Delphini geralmente remetem às edições escolares que contêm expurgos. A expressão veio à luz pela primeira vez com a célebre coleção de clássicos latinos elaborada por Charles de Montausier para o delfim Louis XIV, sob a direção de Pierre-Daniel Huet, “un des premiers exemples d'entrepise éditoriale officiellement voulue et durablement soutenue”.[1] A coleção Ad usum Delphini, assim, consiste num dos primeiros e mais importantes documentos para se investigarem procedimentos de censura bibliográfica no âmbito das edições modernas de autores latinos, abrangendo 36 autores[2] em 61 volumes impressos de 1674 a 1730, se desconsiderarmos as reedições. Desse montante, a Fundação Biblioteca Nacional possui exemplares de 34 volumes na Divisão de Obras Raras (DIORA), oriundos da Real Biblioteca, que podem nos ajudar a entender um pouco mais do projeto educacional por trás da concepção e formação da biblioteca dos monarcas luso-brasileiros.

Pressionados pela vigilância cada vez mais acirrada, os editores do séc. XVII passaram a adotar intervenções nos textos clássicos para garantir a difusão de suas edições em diferentes contextos sócio-culturais. Uma das técnicas de intervenção mais utilizadas era o expurgo, isto é, a supressão de elementos no texto original. Praticado pelos editores como forma de releitura e reescritura das obras antigas, o expurgo refletia a visão tanto de católicos quanto de protestantes segundo a qual a literatura pagã era “infectada” e perigosa para propósitos educacionais.

Na verdade, o expurgo não foi, em absoluto, uma inovação dos editores da coleção Ad usum Delphini. Já no séc. I d.C., o rétor latino Marco Fábio Quintiliano (35-100 d.C.) aconselhava, em sua Institutio oratoria, o cuidado com a seleção das leituras para a formação do orador ideal: “[N]on auctores modo, sed etiam partes operis elegeris”,[3] frase que seria retomada séculos depois como bordão nas capas de várias edições escolares expurgadas. Como afirma Pierre Grimal, Quintiliano “inspirou muitos séculos mais tarde os teóricos dos estudos literários, desde o Renascimento até a época de Rollin.”[4]

Assim, veremos que, no final do séc. XVI, Antonio Possevino (1533-1611), membro da Companhia de Jesus, aliou a atividade pedagógica à censura em sua Bibliotheca selecta (Roma, 1593), ao elaborar uma bibliografia católica a partir da compreensão de que o livro exercia função preponderantemente educacional. Possevino entendia que o conhecimento deveria ser controlado de acordo com um cânone de valores e que o processo educacional tinha de se diferenciar conforme a capacidade do indivíduo. O jesuíta exortava seus leitores, inclusive, a eliminarem de suas bibliotecas manuscritos em grego, latim ou outros idiomas, de modo a não legarem livros “impuros” a seus herdeiros. Consciente do papel fundamental dos impressores, Possevino sugeria-lhes o expurgo para que fosse silenciado nos textos clássicos o que considerava heresia, falta de virtuosidade e obscenidade. Estavam lançadas, assim, as bases para que os editores dos séculos vindouros alterassem textos clássicos, suprimindo ou reescrevendo palavras, versos e até poemas inteiros que pudessem incorrer em censura.

Especificamente quanto à coleção Ad usum Delphini, os princípios motivadores dos expurgos não são explicitados pelos editores nas introduções dos volumes, embora percebamos que buscassem proteger a “pureza” da alma do jovem Delfim. Os editores substituíram passagens por asteriscos, que, em alguns volumes, foram reunidas ao final do livro juntamente com interpretationes,[5] como é o caso da compilação de poemas de Catulo, Tibulo e Propércio, editados em dois tomos por Philippe Dubois e impressos em 1685. No primeiro tomo, compilaram-se as obras de Catulo e Tibulo com notas e interpretationes. No segundo, reuniram-se as elegias de Propércio também com notas e interpretationes, mas a seção final desse tomo abriga todos os expurgata, ou seja, as passagens consideradas “obscenas” e expurgadas das obras dos três poetas por Dubois.

No entanto, nem todos os volumes da coleção Ad usum Delphini dispõem da mesma técnica de censura e podem apresentar variações:

1 Texto original expurgado sem expurgo nas interpretationes;

2 Texto original intacto com expurgo nas interpretationes;

3 Texto original expurgado sem expurgo nas interpretationes, mas paginadas de maneira a confundir o leitor;

4 Texto original expurgado e expurgos compilados nos expurgata ao final do volume;

5 Texto original expurgado e palavras expurgadas no index vocabulorum ao final do volume.

Nossa proposta de pesquisa consiste, portanto, na elaboração do glossário dos expurgos da coleção Ad usum Delphini, devidamente traduzidos e comentados em língua portuguesa. Os verbetes do glossário apresentarão todas as palavras, expressões, versos e poemas expurgados na coleção Ad usum Delphini. Além disso, objetivamos munir esse glossário de um texto introdutório, não apenas oferecendo informações acerca da coleção Ad usum Delphini bem como abordando sua relação com a história do acervo da FBN, cujo passado esteve relacionado preponderantemente com a formação educacional/cultural dos monarcas luso-brasileiros. Esta proposta surgiu de nosso interesse de desenvolver uma pesquisa que contribuísse para a divulgação de uma importante coleção depositada na DIORA e de colaborar com determinados setores da sociedade, a saber, pesquisadores e profissionais que lidam com a história social do livro e da leitura, das bibliotecas e da educação.

Fábio Frohwein de Salles Moniz  é professor de Língua e Literatura Latinas do Departamento de Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação em Latim, Mestrado e Doutorado em Literatura Brasileira, Doutorado em Letras Clássicas pela UFRJ. Colíder do grupo de pesquisa Crítica Textual, vinculado à Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e membro do grupo de pesquisa ATRIVM: Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (UFRJ). Atuante em Crítica Textual, investiga a transmissão da literatura latina em edições modernas, com especial interesse na obra de Catulo, Tibulo e Propércio. Dedica-se ainda ao estudo e tradução de autores novilatinos, orientando pesquisas em nível de Graduação e Pós-Graduação. Coordena o projeto de extensão Núcleo de Documentação em Línguas Clássicas, uma parceria entre a UFRJ e a FBN para a otimização de descrições de obras raras em latim e grego integrantes do Catálogo do Patrimônio Bibliográfico Nacional (CPBN). Publicou diversos artigos sobre controle da leitura na transmissão de obras clássicas latinas, entre os quais "Censura bibiográfica em edições modernas de clássicos latinos", nos Anais da Biblioteca Nacional (disponível em < https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/anais-biblioteca-nacional-vol...)

Currículo Lattes - http://lattes.cnpq.br/4188709746321084

 

[1] VOLPILHAC-AUGER, 2000, p. 17

2 Apuleio, Aulo Gélio, Aurélio Victor, Ausônio, Boécio, Catulo, Cícero, Claudiano, Cornélio Nepos, Estácio, Eutrópio, Fedro, Festo, Horácio, Julio César, Justiniano, Juvenal, Lucrécio, Manílio, Marcial, Marco Verno Flaco, Ovídio, Pérsio, Plauto, Plínio o Velho, Propércio, Prudêncio, Quinto Cúrcio, Salústio, Sexto Pompeu, Suetônio, Tácito, Terêncio, Tibulo, Tito Lívio, Veleio Patérculo, Virgílio.

3 [...] se escolheres não somente os autores, bem como partes da obra.

4 GRIMAL, 1993, p. 142.

5 As interpretationes eram versões latinas que os editores faziam do texto original em linguagem mais simples para facilitar o acesso do aluno à obra do autor latino. Esse recurso didático é uma inovação dos editores da coleção Ad usum Delphini, embora Quintiliano já sugerisse, na Institutio oratoria, que o orador, em determinada fase de sua formação, deveria exercitar a habilidade de traduzir do latim para o latim, isto é, fazer uma paráfrase simplificada a partir de um texto complexo.

 

 

 

.