Entrevista de Renato Lessa para o jornal O Globo

Março, 2015
Renato Lessa
Artigo
Palavra do presidente

No último mês de fevereiro, o presidente da Biblioteca Nacional, Renato Lessa, concedeu entrevista ao jornal O Globo sobre a reedição de três obras do escritor João do Rio pela Biblioteca Nacional. A matéria foi publicada com o título “Cronista da alma carioca, João do Rio tem três livros clássicos reeditados pela primeira vez”. Confira a seguir, com exclusividade, a entrevista na íntegra.

Em 2015, o Rio completa 450 anos e a Biblioteca Nacional reedita três obras de João do Rio. De que forma os seus textos ainda permanecem atuais mais de um século depois de publicados?

Temos praticado uma forma de narrar a história desatenta para os temas de longa duração, para as linhas de continuidade. Cultivamos uma espécie de horror ao passado, movidos pela ficção de que “ainda vamos acontecer”. Trazer os textos de João do Rio, e de outros observadores da vida brasileira no século passado, é uma forma de, além de reconhecer a qualidade intrínseca que possuem, resistir ao apagamento da memória de nossas linhas de continuidade. Faz todo o sentido fazê-lo tendo a efeméride dos 450 anos em vista. Afinal, o Rio de Janeiro é uma cidade marcada pelo binômio destruição/reconstrução. A própria Avenida Rio Branco, na qual está sediada a Biblioteca Nacional, foi inaugurada em 1906, depois da destruição de complexa malha urbana ainda “colonial”, e começou a ser, por sua vez, destruída já nos anos 40, com a demolição de prédios originais da então Avenida Central, para a abertura da Avenida Presidente Vargas. Entre o Obelisco e a Presidente Vargas, por exemplo, sobreviveram apenas cerca de meia dúzia de prédios originais, entre eles o da Biblioteca Nacional. É como se os argentinos tivessem demolido a Avenida de Mayo e os “tripeiros” (naturais da cidade do Porto) o tivessem feio com sua belíssima Avenida dos Aliados... Impensável.

De que forma as crônicas/reportagens/perfis do João do Rio permitem a compreensão da cena política da Primeira República, um período que você mesmo diz ser pouco estudado?

Algumas das crônicas de João do Rio contêm memória vívida dos hábitos políticos da Primeira República. Pertencem a um gênero que nos deu peças tais como A Verdade sobre a Revolução de Outubro, de Barbosa Lima Sobrinho, e A Cadeia Velha, de José Vieira, livros que pouca gente ainda lê... A Primeira República sofre de uma espécie de síndrome de invisibilidade. Hoje sabemos mais, graças à excelente tradição de pesquisa, a respeito do período colonial e do Império do que sobre a Primeira República. Ela permanece como um hiato, como um período “simples”, caracterizado pelo domínio dos oligarcas agrários e pelo folclore coronelista. Na verdade, há uma aversão a visões de longa duração, para utilizar o termo de Ferdinand Braudel. Nossa obsessão com relação ao futuro, por vezes oblitera linhas de continuidade e legados do passado. Trata-se de uma espécie de “cronocídio”, de uma desconsideração do tempo como questão importante, em detrimento da dimensão do espaço. Em certo sentido, tem cabido ao boom das biografias a tessitura de narrativas com maior sensibilidade à dimensão do tempo. No campo das humanidades, em geral, narrativas de longa duração, entre nós, parecem fora de moda...

No seu texto, você destaca a capacidade de João do Rio de construir uma espécie de psicologia política dos homens da Primeira República, que você chama de homo oligarchicus. Por que devemos valorizar esse registro, digamos, mais impressionista da política e dos políticos?

Em grande medida, o homo oligarchicus ainda está no meio de nós. É claro que há aspectos específicos da Primeira República, que por lá ficaram: um eleitorado e um governo mínimos e uma demografia predominantemente rural, para citar apenas alguns. Por outro lado, há continuidades importantes,  e uma delas tem a ver com a cultura política do que chamei de homo oligarchicus. João do Rio capta bem este ponto, opondo, creio que inconscientemente, a alma encantadora das ruas – para citar o título de seu livro mais famoso – à nada encantadora alma da classe política de seu tempo. Ao homo oligarchicus, e ao mundo que o criou, devemos a cultura renitente de uma classe política que se auto-representa e um regime no qual os representantes representam-se a si mesmos diante do governo, em detrimento de seus nexos com o universo dos cidadãos e eleitores, os supostos representados. Algo que, com certeza, já se manifestara no Império, mas que com a Primeira República passa a fazer parte da lógica de sustentação dos governos.

O comportamento político não difere de outros componentes do comportamento humano. Ele é complexo, multifacetado e contraditório, como tudo que fazemos. Penso que exija mais do que medições e avaliações de natureza técnica. As linguagens impressionistas, assim como as expressionistas, cubistas e dadaístas, podem dar a ver aspectos que, por nossa habituação à vida como ela é, nos passam despercebidos. Sendo uma atividade que lida com paixões humanas intensas, e nem sempre confessáveis, a ação política não pode se limitar a protocolos de interpretação, digamos, objetivistas. A principal sensibilidade de João do Rio, com relação à vida política, diz respeito ao tema da dissimulação, algo inscrito no DNA do homo oligarchicus. Com efeito, o homo oligarchicus é, por natureza, um dissimulador, um especialista na arte de representar-se a si mesmo e de proceder às adaptações necessárias para tal. Um belo tema que invoca tanto temas de  psicologia política quanto os recursos corrosivos do humor.