Entrevista com Rogério Bettoni, vencedor do Prêmio Literário na categoria Tradução

quinta-feira, 22 de março de 2018.
Entrevista
tradução, Prêmio Literário, Herman Melville
Rogério Bettoni foi o grande vencedor do Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2017 na categoria Tradução. Seu nome, juntamente com aqueles dos demais vencedores, foi conhecido durante cerimônia de premiação realizada na Biblioteca Nacional no dia 27 de novembro de 2017.

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27 de novembro de 2017 - Rogério Bettoni foi premiado na categoria 'Tradução' pelo trabalho com 'Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra'. Ele recebeu o reconhecimento das mãos de Maria Eduarda Marques, diretora do Centro de Cooperação e Difusão.
27 de novembro de 2017 - Rogério Bettoni foi premiado na categoria 'Tradução' pelo trabalho com 'Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra'. Ele recebeu o reconhecimento das mãos de Maria Eduarda Marques, diretora do Centro de Cooperação e Difusão.

O jurado do Prêmio Biblioteca Nacional, Lawrence Flores Pereira, um dos encarregados de analisar o trabalho de Bettoni, bem como aqueles dos outros concorrentes na categoria, não poupou elogios ao esforço empreendido pelo tradutor:

“Antes de tudo, a tradução do Bettoni harmoniza três qualidades: a precisão semântica no cotejo com o original, a qualidade estética que se manifesta na tradução impecável do fraseado complexo de Melville como na reconstituição do ritmo do original e também uma delicada e quase imperceptível reconfiguração semântica feita por meio de uso sutil de sinonímias. A tradução de Bettoni é inspirada pelo próprio texto de Melville: ela comporta, na sua sintaxe, a grandiosidade das impressões que o próprio Melville comunica em sua experiência como marinheiro. Assim, por exemplo, o respeito pelo detalhe, pela nomeação das partes constituintes do navio (longa tarefa de pesquisa para o tradutor). Vale lembrar que o próprio Melville não se contentava com a menção genérica, mas possuía um gosto pela descrição minuciosa. No livro aparecem, muitas vezes sequenciados, termos como gurupés, eslinga, enxárcia, sovela, e que foram recombinados magistralmente pelo tradutor em frases tão bem compostas que não temos nunca a impressão de estar lendo um texto traduzido. O leitor-tradutor que lê o livro nesta tradução retorna ao original e descobre que nada foi mudado, e que simplesmente Bettoni tem essa capacidade inigualável de encontrar equivalências vivas em português, mas, malabarista da palavra que é, sem perder o balanço da língua original. O ritmo do livro é estonteante em si mesmo”.

A seguir, o tradutor de Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra responde algumas perguntas sobre a importância da obra escolhida, os motivos que o levaram a trabalhar nela, os desafios envolvidos nessa empreitada em particular e um surpreendente relato sobre a parada do navio no Rio de Janeiro, revelando todo o fascínio do autor pela bela paisagem da Baía de Guanabara.

Qual é a importância de Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra na literatura norte-americana? Quais aspectos merecem destaque nessa obra de Herman Melville?

Jaqueta Branca foi um dos livros de Melville que pouco lhe rendeu em vida, tanto em termos financeiros quanto em reconhecimento; no entanto, vendeu mais do que seu livro posterior e mais conhecido, Moby Dick.

É interessante pensar que o livro recebeu boas críticas quando lançado, mas não vendeu o suficiente para que Melville se firmasse como escritor. Aliás, depois do sucesso de crítica e público conquistado com seus dois primeiros livros, Typee e Ommo, a carreira literária de Melville foi perdendo fôlego comercial, e o interesse por sua obra só seria renovado com o centenário de seu nascimento, em 1919, 28 anos depois de sua morte. A partir disso, seus livros passam por uma reavaliação e ele volta a ocupar um lugar, dessa vez definitivo, entre os maiores escritores de língua inglesa.

O livro é inspirado numa viagem de 14 meses feita pelo autor a bordo de um navio de guerra, que parte de Honolulu em agosto de 1843, contorna a América do Sul, faz uma parada no Rio de Janeiro e aporta em Boston em outubro de 1844. A estrutura narrativa que Melville constrói, tão mencionada pela crítica – uma mistura de vozes e estilos, que incorpora relato jornalístico, diário de viagem, romance, autobiografia –, é um dos fatores que faz do livro um clássico, além do cuidadoso trabalho com a linguagem e com a inovação vocabular. Mas há também outros elementos de grande importância no livro: a desmistificação do glamour das viagens marítimas, uma vez que ele descreve o universo do navio como um microcosmo da vida em terra firme; o caráter político da denúncia de punições e flagelos desumanos cometidos a bordo, o que contribuiu para convencer as autoridades a abolir a prática.

Como surgiu a ideia de traduzir a obra Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra? Partiu de uma iniciativa/interesse pessoal do tradutor, ou da Editora Carambaia?

Foi uma conjunção feliz, eu diria. A iniciativa partiu do editor Fabiano Curi, que me convidou para traduzir o livro. A editora tem feito um trabalho importante, concentrado principalmente na publicação de clássicos que, por um ou outro motivo, nunca foram publicados no Brasil, ou cuja edição está esgotada há muito tempo. Jaqueta Branca é um desses “furos literários” encontrados pela Carambaia.

Feito o convite, restou meu interesse pessoal – a escrita de Melville me agrada, mas as dificuldades de traduzi-lo poderiam ser um empecilho. Eu me apaixonei pelo livro logo nas primeiras páginas, o que foi decisivo para aceitar a tarefa.

Há algum aspecto que você gostaria de destacar em torno da tradução da obra, algum desafio em particular, em relação à linguagem, estilo, construção das frases ou tipo de narrativa de Melville?

Acho que o principal desafio é comum à tradução de textos escritos há muito tempo – temos de lidar com uma linguagem e uma sintaxe particulares, cujo contexto não nos é mais acessível, e que soa estranho e peculiar inclusive para quem lê o livro hoje nos países de língua inglesa. Melville tem uma estrutura gramatical característica, que, se seguida à risca, pode não soar natural em português. O desafio, então, foi buscar um equilíbrio entre o novo e o antigo, de modo que o leitor atual se sentisse conduzido no ritmo e no estilo do autor, com uma estranheza próxima da que sentiria hoje o leitor de língua inglesa.

A questão vocabular também foi um desafio. Há muitos pormenores no texto, palavras específicas do universo náutico e militar, além de gírias típicas daquele contexto e daquela época, que caíram em completo desuso e desapareceram, ou que significam algo bem diferente hoje em dia. De modo geral, há trechos em que o leitor de língua inglesa, no fluxo da leitura, “passa por cima” dessas gírias e atribui a elas um sentido contemporâneo; numa leitura mais atenta, percebe que esta ou aquela palavra na verdade está “deslocada”, e daí o sentido se desdobra em camadas. Nesse sentido, esforcei-me para não usar palavras introduzidas no nosso vocabulário nos últimos cem anos. Em alguns casos bem específicos, pincelei algumas palavras que até parecem contemporâneas, mas não o são. A palavra “zorra”, por exemplo, no sentido de “balbúrdia” ou “confusão”, parece gíria contemporânea, mas tem esse sentido dicionarizado pelo menos desde 1903.

Além dessa questão vocabular, que envolve muita pesquisa, também foi um desafio manter a sutileza do estilo de Melville – o humor, o escárnio e o deboche sem exagerar, a leveza e a elegância das entrelinhas sem explicitar. Tudo isso são diretrizes que o tradutor estabelece para si, que também não podem ser rígidas, então há de se manter um equilíbrio, acredito.

O relato sobre a parada do navio no Rio de Janeiro parece ser particularmente interessante para o leitor brasileiro, qual é a sua impressão pessoal sobre essa parte da obra?

É grande o valor histórico e literário desse relato, e fiquei surpreso com o destaque que Melville dá à visita pomposa do imperador ao navio, mas também às belezas do Rio de Janeiro. Melville ficou tão impressionado com a paisagem que faz uma digressão: ele reconhece a promessa de que só falaria sobre a vida do navio, mas abre parênteses, fascinado, e dedica um capítulo inteiro à Baía de Guanabara. E é uma descrição única na literatura – até onde sei –, na qual ele não economiza elogios para enaltecer a baía e tudo que seu olhar alcança, citando praias que hoje desapareceram da paisagem.

Você gostaria de comentar algum outro trecho, passagem ou aspecto específico da obra?

Particularmente, gosto do jogo que Melville faz com o objeto “jaqueta branca” e suas diferentes conotações ao longo do texto, e gosto de dizer que a relação da jaqueta objeto com o Jaqueta personagem é quase um reflexo do escritor com sua obra. Gosto da teatralidade com que ele descreve algumas cenas, como as flagelações, ou uma cirurgia para amputar a perna de um marujo, e ainda da elegância para tratar do homoerotismo entre os marinheiros, que na narrativa adquire o caráter típico da época e da cultura, tão velado que quase passa despercebido.

Na sua avaliação, o grande sucesso de Moby Dick de alguma maneira acabou por eclipsar outras obras de Herman Melville, como esta Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra?

Embora Melville seja mais conhecido por Moby Dick e ter fama de grande escritor de narrativas marítimas, sua obra é vasta e trata de diferentes temas. Acho que eu não sairia da superfície se tentasse avaliar o sucesso de Moby Dick em detrimento de outros livros. O que observo, no entanto, é que Moby Dick faz parte do imaginário mundial, é um grande clássico literário; mas Bartleby também é uma obra importante para nossa cultura, discutida um sem-número de vezes na filosofia e na psicanálise. Billy Bud, o livro póstumo e inacabado, também é conhecido entre os leitores brasileiros, mas não acho que o fato de Jaqueta Branca ter permanecido inédito no Brasil até recentemente se deva ao sucesso de outras obras.